Documentos Interessantes
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Documentos interessantes: Sobre o acervo
Em 1894 Antonio de Toledo Piza, membro atuante na intelectualidade paulista da época, primeiro secretário eleito do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado neste mesmo ano e então diretor do Arquivo do Estado de São Paulo, teve a idéia de começar a transcrever e publicar documentos manuscritos, sob a guarda do próprio Arquivo ou de prestigiosas famílias paulistas, que contassem histórias de São Paulo colonial.
Desta sua iniciativa nasceu a Coleção, batizada por ele próprio de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. O enorme volume de papéis, de naturezas distintas e temas variadíssimos, alguns originalmente manuscritos no final do século XVII e início do XIX e a maioria do século XVIII foram transcritos por uma equipe de paleógrafos coordenada por Toledo Piza e não eram casualmente interessantes.
A escolha do que foi reunido em 95 volumes e que agora se torna acessível em suporte digital fez parte de uma escolha ideológica própria dos primeiros anos da instalação da República no Brasil, quando os estados para afirmarem sua autonomia recém conquistada, foram atrás de suas antigas histórias, especialmente aquelas que consideravam interessantes o suficiente para definir com brilho as suas identidades regionais.
Ainda assim os documentos que fazem parte desta coleção, raramente completa e em estado de deterioração em várias bibliotecas do estado de São Paulo, são úteis e valiosos tanto para o curioso, como para os professores de História do ensino médio e fundamental, como para o investigador em História dos Impérios euro-americanos da época moderna.
O primeiro número da coleção revelou um manuscrito feito às pressas pelo jovem Paulo do Valle, estudante de direito e autor de alguns textos dramáticos escritos no século XIX e encenados sob as Arcadas da então Academia Jurídica, como era chamada a Faculdade de Direito do Largo São Francisco.
Neste escrito, aquele que então se tornaria professor de retórica na mesma Academia, fez um resumo histórico de um dos acontecimentos ainda hoje mal compreendidos na história de São Paulo: o motim ocorrido em 23 de maio de 1822 e alcunhado por seus contemporâneos como Bernarda de Francisco Ignácio.
Na apresentação do volume Antonio de Toledo Piza diz que decidiu dar publicidade a este texto "por entender que não deixa de ser interessante como um documento histórico da história da independência de São Paulo". Em seguida e formando o segundo volume, foram publicadas as Atas do Governo Provisório de São Paulo (1821-1822).
Embora praticamente toda a coleção englobe documentos do século XVIII, a história da independência evocava uma imagem de autonomia adequada para aquele momento de afirmação da identidade regional paulista (Ferreira, Antonio Celso. A epopéia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo, Ed. UNESP, 2002) frente a outras identidades regionais que também se firmavam e disputavam posicionamentos privilegiados na nova ordem política surgida com a implantação da República no Brasil.
A partir do volume 3 começaram a aparecer as transcrições com os assuntos mais diversificados da história da capitania de São Paulo. Boa parte destes escritos foram produzidos pelos reis portugueses, pelos governadores, capitães-generais e outros funcionários do Império português atuantes na capitania. Mas um manuseio de cada volume mais demorado e aguçado pela curiosidade revela um mundo à parte: textos não necessariamente de caráter administrativo, mas que estavam guardados no acervo pessoal de documentos de funcionários régios ou anexados aos papéis públicos.
Vários textos de genealogias, cartas, orações, desenhos topográficos, reflexões sobre a história da capitania escritos pelos amantes da história, como assim eram os que faziam história nos tempos da Primeira República no Brasil enriquecem e tornam surpreendente a leitura de boa parte dos documentos de teor administrativo reunidos pela Coleção.
De um modo geral os volumes concentraram textos de um mesmo assunto ou autoria, como os 6 volumes sobre a "empresa do Iguatemi" (5-10), esforço empreendido pelo governador D. Luis Antonio de Souza Botelho Mourão (1765-1775) para ocupar a região fronteiriça entre Mato Grosso e o Paraguay (Belloto, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2 ed. , São Paulo, Ed. Alameda, 2007) ou os 14 volumes contendo os ofícios e correspondências de Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) (28, 42-43, 74-84), um dos governadores mais impopulares que a capitania já teve.
Mas há também muitos documentos avulsos, agregados num só volume (3) e que trazem Termos de elevação de povoados a vilas, como Campinas e Araritaguaba (atual Porto Feliz), Termos de instalação de pelourinhos, Autos de eleições locais de oficiais das câmaras municipais, Termos de divisões de limites, informações sobre a exploração de rios da região, o comércio do sal, um dos principais gêneros da economia de animais muar e bovinos da América portuguesa.
A documentação sobre a outra empresa paulista de novos descobertos, a do centro-sul na segunda metade do século XVIII, está bem distribuída nos vários volumes de correspondências, ofícios de governadores, cartas dos monarcas e avulsos. O sonho de encontrar o eldorado, região das minas de ouro e prata, nunca abandonou os paulistas, mesmo depois que a Coroa portuguesa deu um jeito de tirar-lhes das Minas Gerais e com o exaurimento da extração do metal.
Os papéis dos Documentos Interessantes são uma oportunidade curiosa para se acompanhar este segundo momento das expedições sertanistas paulistas, nos sertões da própria capitania, que se estendia para o sul, nos campos de Curitiba e para as regiões de Tibagi, Guarapuava, ilha de Santa Catarina, Lages, Rio Grande.
São textos que descrevem com tons de cruzada os esforços e a valentia de sertanistas de São Paulo, empenhados antes de tudo numa empresa monárquica, que lhes daria prestígio e o tão cobiçado reconhecimento do rei. Devassar sertões, subir morros, atravessar rios, enfrentar índios rebeldes, sofrer as penúrias próprias de longas jornadas, garantir a ocupação do sul enfrentando os castelhanos lhes dariam o status de vassalos fiéis, tornando-os mais portugueses do que os nascidos no reino.
Documentos interessantes são as cartas escritas pelos próprios sertanistas ao governador, narrando as mazelas de suas expedições, os fracassos, as vitórias, os novos caminhos descobertos e as disputas em que se viam metidos com outros que ambicionavam os mesmos rios, lavras e morros.
João Baptista Victoriano, um sertanista, escreveu uma Representação ao Governador Martim Lopes Lobo de Saldanha, em 1782, reclamando de um alferes que lhe estorvava a empresa do novo descoberto do Morro Ivutucavarú, na capitania de São Paulo. Com violência, este alferes expulsou todos os seus companheiros, alegando ser ele o verdadeiro descobridor.
Victoriano, como um bom paulista súdito do rei português, escreveu uma extensa Representação ao governador, narrando todos os perigos e riscos de vida que ele e seus camaradas enfrentaram para alcançar o dito morro. Junto a este escrito público foi anexada um aranzel, uma espécie de instruções de caminho para se alcançar umas lavras de ouro.
O aranzel anexo terminava com as fúnebres palavras de seu autor: "por estar para morrer eja não ter esperanças de vida fasso este aranzel deixando para os viventes: muitos anos não quis declarar estes haveres; e quem achar com este meu Roteiro os haveres ditos, pesso me mande dizer quarenta missas outras quarenta pelas mais necessitadas almas" (DIHCSP, v. 3, pp. 57-58)
Ainda no mesmo escrito público seguia uma oração, uma "Benssam do ar": "ar vivo, ar morto, ar de estupor, ar de perlezia, ar carregado, ar excomungado, eu te arenego, em nome da Sanctissima Trindade que sayas do corpo desta criatura ou animal e que vas parar no mar para que viva sam e aliviado".
Estes eram papéis comuns, escritos nas derradeiras horas de vida de sertanistas esperançosos do reconhecimento régio. O interessante é que serviam para uma maneira de dar maior autenticidade ao que se representava ou peticionava nos documentos burocráticos. Embora o caráter da Coleção dos Documentos Interessantes seja predominantemente administrativo, escritos como estes revelam muito do lado humano desta gente que em nome do rei vivia atarefada em serviços de abrir caminhos, fazer comércio, domar índios, expulsar espanhóis, mesmo que para isto colocassem em risco suas próprias vidas.
Algumas famílias importantes da sociedade paulista do período republicano também contribuíram para a coleção dos Documentos Interessantes doando papéis encontrados nos acervos pessoais de seus ilustres ascendentes. A família de José Arouche Toledo Rendon, letrado e homem público, beneficiado com várias patentes militares e postos na administração do Império, concedeu a Toledo Piza umas cartas muito interessantes trocadas entre dois importantes letrados da São Paulo do século XVIII: o genealogista Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777), autor da Nobiliarquia Paulistana Histórica e Genealógica e o frei beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus (1714-1800), que escreveu Memórias para a História da Capitania de São Paulo.
Curioso é o parecer emitido pela Academia Real das Ciências de Lisboa para a obra de Frei Gaspar e que a família de Toledo Rendon cedeu a Toledo Piza para juntar a um dos volumes dos Documentos Interessantes.
A Academia foi rigorosa com o texto da obra de Frei Gaspar, condicionando a autorização de sua publicação a algumas condições, como a mudança do próprio título, cujo original era Fundação da Capitania de S. Vicente e ações de Martim Affonso. As anedotas deveriam sair do corpo do texto e ficar em sessão separada.
Para conter o ânimo bajulador de Frei Gaspar, que poderia confundir as prerrogativas hierárquicas e de distinção social da época, a Academia impôs ainda que os epítetos "doutíssimo" e "erudito", que ele dava a escritores de merecimento não distinto, deveriam ser omitidos ou pelo menos usados "com mais parcimônia". (DIHCSP,v. 3, pp. 25-26)
Mas na Coleção há também muitos outros papéis sem data e assinatura encontrados em meio aos documentos de governadores, o que faz dos Documentos Interessantes uma arca de surpresas, mais do que um encadeado de textos meramente burocráticos.
Um bom caminho para quem quer entender como a coroa portuguesa conseguiu manter o seu Império na América é a leitura destes escritos produzidos pelos seus funcionários que estiveram na capitania de São Paulo. Suas ações procuraram enfrentar os muitos problemas de divisões de limites que existiram em várias regiões da América portuguesa e mesmo avançaram ao longo do século XIX. O volume 11 da coleção reúne quase mil páginas tratando apenas de uma das maiores controvérsias da história da capitania de São Paulo: o das suas divisas com Minas Gerais.
Bandos, portarias, ordens régias, avisos, regimentos, ordens eram documentos da administração colonial com características diversas e emitidos por governadores e capitães-generais, com o objetivo de fazer cumprir ordenas pontuais, instruir na aplicação de leis ou ordens de serviços, mas sempre sob as diretrizes da Coroa portuguesa.
Os assuntos discutidos nestes manuscritos transcritos por paleógrafos do Arquivo do Estado foram os mais diversos e curiosos: a proibição da exploração mineral em Paranaguá, a autorização para a abertura de caminhos que seguiam para as minas de Goiás, as descrições de verdadeiros duelos travados com índios nos sertões do centro sul do território, os soldados desertores, a concessão de patente militar para um paulista que desempenhou bons serviços à Coroa, um levantamento censitário dos habitantes da cidade de São Paulo.
Muitas cópias de cartas escritas por D. João V, D. José I e D. Maria I orientavam como devia ocorrer a arrematação dos contratos públicos, como o dos dízimos, cobrados sobre a produção das capitanias, qual deveria ser a extensão das sesmarias concedidas, proibindo a presença de navios estrangeiros na costa do território ou que pessoas sem licença entrassem nas zonas minerais e até mesmo as informações de nascimentos de infantes e princesas, núpcias e passamentos reais.
Antonio de Toledo Piza nem desconfiava, em 1894, que sua idéia de tornar acessível documentos manuscritos interessantes para a história de São Paulo através de impressos editados pelo Arquivo do Estado seria retomado num suporte então impensável, como o digital.
Se teve três vidas, como manuscrito, impresso e agora imagem, os Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo têm muita história para contar.
Denise Aparecida Soares de Moura
Campus de Franca